Um
espectro ronda os condomínios brasileiros: o espectro dos impostos. Toda a
sociedade deve ser unir a essa jornada: do papa Francisco a Edir Macedo, de
Aécio Neves a Eike Batista, de José Serra a José Dirceu, da Família Marinho a
Daniel Dantas.
Que
partido, ao propor um imposto para financiar a saúde ou a educação, não foi
acusado de antilibertário, castrador e déspota. Que partido de oposição, por
sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha
infamante de explorador?
Toda
a história da humanidade pode ser resumida na luta do Estado versus cidadão
explorado, espalhada hoje na vadiagem dos pobres não pagadores de impostos
sustentados por políticas públicas financiadas com dinheiro público oriundo de
impostos e a classe média explorada pagadora religiosa de impostos. Assim foi
entre os aristocratas atenienses e os escravos vagabundos, entre os patrícios e
os ociosos dos plebeus que não sustentavam o senado, entre o barão e o imbecil
preguiçoso do servo. Toda a história da humanidade pode ser resumida na luta
entre o Estado opressor e o indivíduo oprimido, na qual a opressão se expressa
pelo pagamento de impostos.
Se fosse um manifesto que procurasse sintetizar sua visão de
mundo, o acima poderia, talvez, expressar o teor das reivindicações da classe
média. A classe média parte do seguinte pressuposto: ela é a classe (sic!)
verdadeiramente explorada, que paga seus impostos; portanto, o explorador é o
Estado (sic!). As outras classes (sic!) não são exploradas, seja porque são
ricas e não precisam trabalhar, seja porque são pobres e não pagam impostos,
sobretudo imposto de renda. Então, como tsunami, ela se volta com ódio mortal
aos impostos diretos, sobretudo o Imposto de Renda, o IPTU e o IPVA, alegando
que são impostos que ela majoritariamente paga, transformando-se em pilar de
sustentação do corrupto Estado brasileiro.
Com um maniqueísmo típico, ela relaciona a pujança dos
congressistas com os impostos, alegando que é ela que os sustenta. Ainda por
cima, volta-se para as políticas sociais, alegando também que é ela que
sustenta todo esse desperdício. Mas, para chegar a essas conclusões estúpidas,
ela elimina muitos e muitos conceitos e constatações que não permitiriam, com
um mínimo de rigor lógico, obtê-las. Para chegar a essas conclusões, ela se faz
a classe mais ignorante da composição social brasileira.
Vamos analisar alguns tópicos:
1º
Classe média não sabe nada de carga tributária.
Ao
contrário do que boa parte da classe média pensa, ela paga poucos impostos. E
não falo comparando com a média dos países ricos, quando ela alega que lá, pelo
menos, há serviços de qualidade – o que revela que, no fundo, ela só quer pagar
o que “consome”, como shopping center. Falo comparando com outros segmentos
populacionais da sociedade brasileira. Grande parte da carga tributária
brasileira é fruto de impostos indiretos, que são aqueles que estão na cadeia
produtiva e compõem o preço da mercadoria, já que nenhum burguês que se preste
fica com esta conta na medida em que pratica altivamente a política da
socialização dos prejuízos. Os impostos indiretos são pagos por qualquer pessoa
quando compra qualquer mercadoria ou serviço. Estima-se que 48% a 50% da
arrecadação brasileira ocorram através de impostos indiretos, o que significa
que todos, independente da classe ou segmento, pagam a conta, porque todos
consomem. Enquanto isto, os tributos diretos representam cerca de 28% da carga
tributária brasileira.
2º
Classe média não sabe nada da distribuição da carga tributária brasileira.
Como o consumo consiste em 50%, em média, da composição de
gasto da família brasileira, o pagamento de impostos indiretos passa a
significar grande parte da receita do Estado. Entretanto, quanto menor a renda
familiar, maior a incidência do consumo sobre ela, fazendo com que,
proporcionalmente, essa família pague mais impostos indiretos comparados com
famílias com maior renda. Ou seja, o problema não é o pobre que não paga imposto,
porque ele paga, mas o rico que paga pouco, pois o comerciante, industrial ou
prestador de serviços transfere os seus impostos para o preço da mercadoria.
Segundo dados da Receita Federal, uma família com renda de
até R$ 400,00 destina 57,85% para habitação (aqui tem IPTU, pois o dono da
imobiliária ou o cedente faz o cidadão pagar em parcela destacada no começo do
ano ou embute no preço do aluguel, o que desmente a ideia segundo a qual pobre
não paga imposto direto), 45,34% para alimentação (impostos indiretos), 11,81%
para transporte (impostos indiretos), 8,28% para vestuário (impostos indiretos)
e 6,26% da renda com despesas com saúde (impostos indiretos, já que grande
parte destina-se para medicamentos inexistentes na rede pública de saúde ou automedicação). Reparou que não há espaço orçamentário para lazer? (Recomendo a leitura do trabalho no link http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/Premio_TN/XIIIpremio/sistemas/1tosiXIIIPTN/Carga_Tributaria_Brasil.pdf/)
Peguemos o ICMS. Enquanto que o ICMS incide sobre a renda
familiar monetária em famílias que recebem até R$ 400,00 em 11,08%, em famílias
com renda acima de R$ 6.000,00 o mesmo tributo incide 6,03%. Algo parecido
ocorre com o PIS e Cofins e IPI, ainda que este seja mais igualitário, o que é
também um problema quando se pensa que sistema tributário justo é aquele que, à
luz da equidade e igualdade, trata desiguais de forma desigual.
Bem,
então a classe média partiria para uma defesa ferrenha de uma reforma
tributária que cobre mais dos ricos, taxando renda e fortuna e desonerando
produtos, sobretudo aqueles ligados ao consumo imediato, qual seja,
alimentação, habitação e vestuário simples? Não, ela defende ferrenhamente a
diminuição da carga tributária, em alguns casos a extinção de impostos, taxas e
contribuições, como foi o caso da CPMF.
Ela confronta a sua moral e bom costume contra qualquer
política de assistência a trabalhadores pobres e miseráveis, afirmando que ela,
explorada, está sustentando vagabundo que não sabe votar. Bem, por que ela faz
isto?
Aqui é uma mistura de ignorância, preconceito e
autopreservação. Analisando sucintamente os valores despendidos dos impostos
pelo Estado brasileiro, chegamos à constatação que muito do que é arrecadado é
direcionado para pagamento de juros e rolagem da dívida pública.
Mas
o que isso significa? Significa que metade da média dos trabalhos dos
brasileiros (PIB) é direcionada para pagamento de dívida e juros para os poucos
que possuem títulos da dívida pública. Mas quem são os detentores de títulos da
dívida pública? Famílias milionárias. Contabiliza-se algo em torno de 20 mil
clãs, segundo o IPEA, que se apropriam de 70% dos juros pagos pelo Estado, com
garantia de superávit primário de 5 a 6 % do PIB subscrita em programa
econômico oficial, em contraposição aos 11 milhões atendidos pelo Programa
Bolsa-Família, que resume seus parcos recursos a 1% do PIB brasileiro.
Diante
disto, proponho, sintetizando as indicações de Leonardo Sakamoto, que chamemos
o pagamento de títulos da dívida pública de Bolsa-Família Milionária, e o
pagamento do programa governamental a famílias trabalhadoras de baixa renda de
Bolsa-Família Pobre.
Mas façamos um esforço maior para compreender o absurdo da
coisa. Agrupemos todas as políticas públicas que, em tese, são direcionadas ao
trabalhador – digo em tese porque, além da corrupção, há PPP, projetos
duvidosos, como o TREM BALA, que não é para quem para em Capão Redondo e sim em
Higienópolis, programas elitistas de Ciência e Tecnologia, onde hoje grande
parte vai para inovação em multinacionais e suas prestadoras de serviço,
isenção de impostos como programas sociais, como bolsas de estudo em entidades
privadas de todas as etapas de ensino e Planos de Saúde, retirando investimento
de escolas públicas e SUS e direcionando dinheiro público para escolas privadas
e planos privados, etc.etc.etc.. Agrupemos as seguintes áreas: Ciência e
Tecnologia, Gestão Ambiental, Saneamento, Habitação, Urbanismo, Direitos da Cidadania,
Cultura, Educação, Saúde, Trabalho, Assistência Social, Segurança Pública, Transporte
e Desporto e Lazer. Por ora, vamos retirar a Previdência Social, que
corresponde a, aproximadamente 19% do PIB. Somando todos os investimentos,
chega-se a bagatela de 10,8 % do PIB. Somando com Previdência Social (lembrando
que o grosso pago é de funcionários públicos federais, algo distante dos que
recebem programas sociais), chega-se a 29% do PIB. Muito abaixo dos 47% de
amortização (que não existe, pois a dívida só cresce, o correto seria rolagem)
e pagamento de juros da dívida pública. Sim, o pagamento de juros e o tal do
superávit primário superam todos os anos o investimento em saúde e educação,
como pode ser visto em 2011 e 2012 e provavelmente em 2013, que possui uma
previsão de 42% do PIB para pagamento de juros e amortização da dívida, algo em
torno de R$ 900 bilhões.
Chega-se a conclusão de que a classe média não é contrária a
políticas de distribuição de renda, mas tão somente ao programa Bolsa-Família
Pobre, pois destila seu ódio tão unicamente a esse programa de distribuição de
renda. O Bolsa-Família Milionária é fruto de desejo da família de classe média,
quando já não participa da jogatina da bolsa de valores com seus parcos títulos
do BB. Almejam entrar no clã dos herdeiros do programa Bolsa-Família
Milionária, o qual “distribuiu” em 2008 R$ 162 bilhões quando o Imposto de
Renda arrecadou na fonte-salário R$ 50 bilhões e um total de R$ 190 bilhões.
Segundo
o IPEA, uma família que recebe menos do que dois salários mínimos, para o mesmo
ano de 2008, teve que trabalhar 197 dias para pagar impostos (mais do que seis
meses cara pálida), ao passo que quem recebe mais do que 30 salários mínimos
teve que trabalhar 106 dias (pouco mais do que três meses). Em tese, um pobre
trabalha praticamente duas vezes mais do que um playboy para pagar o fisco,
mesmo não tendo que pagar, formalmente, imposto direto.
Então,
por que o ódio ao Bolsa-Família Pobre?
3º
Classe média é hipócrita porque adora uma renúncia fiscal
Pagar imposto direto seria ótimo para uma política
tributária mais justa, pois permitiria construir um sistema mais justo em que
os mais ricos pagassem mais. Entretanto, no Brasil, pagar imposto direto, mesmo
com todas as reclamações, é bom, mas não para o Estado Brasileiro, e sim para o
contribuinte que consegue pagar imposto de renda e pagar menos impostos
indiretos. Como o sujeito pode abater
quase tudo na declaração e ainda consegue a restituição do Imposto de Renda, o
Imposto de Renda transforma-se em uma boa política de fomento para muitos
setores privados (e privatizados). Assim sendo, no Brasil o Imposto de Renda
não é um dever, mas um direito obrigatório, mais ou menos como o voto.
Direito por que o sujeito vê parte de sua renda usada para
fins privados voltar para o seu bolso. Quando o Estado restitui um plano de
saúde ou a mensalidade de escola particular, fomenta-se o mercado privado da
saúde e da educação. Veja, há pessoas que compram um plano privado de saúde ou
pagam a mensalidade de escola privada porque sabem que o governo vai depositar
em sua conta parte do que foi gasto. Contudo, esse dinheiro que cai na conta do
consumidor vai para o bolso do plano de saúde e do dono da escola privada, como
ocorre hoje com o subsidio dado às empreiteiras com o Minha Casa Minha Vida. Na
prática, é subsidio.
No ano de 2011, esse subsídio a todos os setores que
imaginar, segundo o IPEA, perfez R$ 137 bilhões. Em Imposto de Renda de Pessoa
Jurídica foram R$ 28 bilhões, enquanto que para Pessoas Físicas foram R$ 16
bilhões. Se você colocar no bolo isenções como IPI, Igrejas etc.etc., a coisa
passa dos R$ 300 bilhões. Só com plano de saúde, estima-se isenções na ordem de
R$ 16 bilhões, um quarto do orçamento do Ministério da Saúde – sem contar
também a dificuldade do SUS de restituição dos Planos de Saúde para tratamentos
mais caros, uma vez que eles empurram sem dó para o SUS.
Como isso passa pela classe média para que ela gaste em
setores privados, os quais ela quer distância daqueles prestados pelo Estado
(serviço público), proponho que chamemos de Bolsa-Família Classe-Média. A
restituição faz parte da política de “distribuição” de renda constituída pelo
Estado brasileiro, sem a qual setores privados (e privatizados) diminuiriam sua
margem de lucro e aumentariam o valor dos convênios e mensalidades. Essa
política ajuda a induzir a classe média a fugir do serviço público. Ah, já sei,
a classe média vai para o setor privado porque o setor público é ruim. Errado.
Ela vai para o setor privado e piora o serviço público porque retira orçamento
dele com indução do Estado, comprometido com a margem de lucro dos planos de
saúde e escolas privadas. Quem sabe minimamente de História da Educação sabe do
comprometimento histórico do Estado brasileiro com as escolas privadas. Quem
acompanha os jornais, sabe que Dilma, no começo do ano, bem antes das
manifestações de junho, propôs a universalização dos planos privados a baixo
custo com subsídio estatal nos moldes do Tea
Party. O lobby desses setores é fortíssimo,
são grandes financiadores de campanha (Sobre o assunto, leia os textos abaixo).
Ah, restituição não é bolsa, é restituição, como o próprio
nome diz. Mas veja, se o Bolsa-Família Pobre é fruto de impostos, taxas e
contribuições, e se sabidamente grande parte da arrecadação vem dos impostos
indiretos, e se sabidamente grande parte dos impostos indiretos são pagos pelos
trabalhadores pobres, então é justo tratar o Bolsa-Família Pobre como
restituição também, porque o mecanismo é o mesmo. Pagaram impostos e tiveram
parte dos impostos restituídos. Mas como ninguém trata o Bolsa-Família Pobre
como restituição, e sim como bolsa, então é razoável também que tratemos a
restituição do Imposto de Renda como Bolsa-Família Classe-Média.
Recentemente, houve a notícia de que 1,6 milhões de famílias
devolveram, voluntariamente, os cartões por considerarem que não necessitam
mais do programa, pois ultrapassaram o valor de R$ 140,00 por indivíduo.
Façamos uma média de que, por ano, uma família do Bolsa-Família Pobre receba R$
1.000,00. Digamos que uma pessoa receba uma restituição com o mesmo valor. Será
que ela devolveria? Nunca ouvi falar. Devolver restituição de imposto de renda
ou desistir dela na elaboração da declaração ninguém quer... ou se existe, estou
convicto que são casos não chegam a 1 milhão de pessoas.
4º
Todo mundo fala do impostômetro, mas e o sonegômetro?
A sonegação de impostos, segundo o sonegômetro, pode chegar
a R$ 415 bilhões em 2013. Isto equivale a
- Mais que toda arrecadação
de Imposto de Renda (R$ 278,3 bilhões).
- Mais que toda arrecadação de tributos sobre a Folha e Salários (R$ 376,8 bilhões).
- Mais que toda arrecadação de tributos sobre a Folha e Salários (R$ 376,8 bilhões).
- Mais da metade do que foi
tributado sobre Bens e Serviços (R$ 720,1 bilhões).
- 5.156.521 ambulâncias;
- 1.441.319 postos de saúde
equipados;
- 8.647.916 postos policiais
equipados;
- 12.456.996 salários anuais
de policiais (SP);
- 30.079.710 salas de aula;
- 20.377.006 salários anuais
de professores do ensino fundamental (piso MEC);
- 612.241.888 salários
mínimos;
- 1.241.699.072 cestas
básicas;
- 2.986.330 ônibus
escolares;
- 4.010.628 km de asfalto
ecológico;
- 18.672.964 carros
populares (Fiat Mille Economy 2p);
- 13.836 presídios de
segurança máxima;
- 143.137.931 iphone 5
(16Gb);
- 11.860.000 casas populares
(40m²);
- 16.000.000 de bolsas
família por 31 anos (básico R$70,00).
Bem, quem sonega imposto? É aquele que paga impostos
indiretos? Não, não tem jeito, está embutido no preço da mercadoria. Quem
sonega é aquele que paga tributos diretos, seja Pessoa Física ou Jurídica.
Então façamos o cálculo político. Pobre paga imposto indireto, que é o que
compõe a maior parte da carga tributária; pobre proporcionalmente paga muito
mais imposto e, portanto, trabalha mais dias, mais do que seis meses para dar
conta do fisco; pobre não paga imposto direto, o qual ainda permite a
restituição de parte e a sonegação para quem paga (por isso que no Brasil é um
direito obrigatório, e não um dever); e o problema é o Bolsa-Família Pobre? O
Bolsa-Família Classe-Média é ignorado pela classe média por questão de
hipocrisia e pelos milionários por interesse de subsídio a setores privados (e
privatizados), e o Bolsa-Família Milionária também o é por
questão de hipocrisia pelos milionários e pela classe média explorada que sonha em pertencer ao
seleto grupo.
Aqui
é um ponto interessante, porque a classe média se junta com os burgueses
ricaços, que, abraçados à distância, voltam a raiva e ódio aos trabalhadores pobres.
A explicação é simples. É muito mais fácil e óbvio odiar o que você não quer
ser do que você quer ser, almeja e sonha todos os dias fazendo gracinha para o
chefinho em busca de uma progressão na carreira. Odiar o pobre, ter frêmito de
prazer ou bocejo de indiferença quando um grupo de extermínio mata pobre e preferencialmente
preto – “É tudo bandido!” –, é consequência lógica de quem tem horror a
proletarização, como bem lembra Marilena Chauí (ver vídeo em http://www.youtube.com/watch?v=9RbBPVPybpY).
Mas
não é só isso. Os direitos sociais, como saúde, educação e transporte, por
exemplo, a classe média os obteve nos últimos 20 anos de forma privada, ainda
que com qualidade para lá de duvidosa. Ela compra esses direitos sociais. Quem
é da década de 1990 vai se lembrar. Quando da onda das privatizações, era comum
ouvir, além da ineficiência inerente do setor público, que o mesmo deveria
existir somente para quem não conseguisse ter renda suficiente para ter acesso
ao mesmo serviço oferecido pelo setor privado. O que está implícito? O setor
público é apenas um ente subsidiário do setor privado mais eficiente. Assim,
serviço público é coisa pobre para pobre, porque ele deveria estar na rebarba
das políticas estatais, dimensionadas prioritariamente pelas agências
reguladoras.
Como a classe média conseguiu alçar vôo no Plano Real para
ter acesso aos direitos sociais de forma privada, o setor público
transformou-se em algo a ser evitado, inclusive na sociabilidade mais rasa que
se possa imaginar – entre uma praça e um shopping para um passeio familiar,
advinha qual é a escolha? A praça de alimentação –. Qual foi a consequência?
Além de transformar o privado em espaço precípuo de sociabilidade,
recrudescendo o individualismo, retirou pessoas das fileiras de luta por
melhoria do setor público. Então, a questão na década de 1990 não era melhorar
a educação pública, a saúde pública e o transporte público, porque foram
substituídos pela saúde privada, a escola privada e o carro individual moderno privado
em oposição às carroças de Collor. A questão era ter acesso individual a esses
direitos.
Nesse sentido, qualquer imposto é visto como uma barreira
para a consecução individual dos direitos mercantis. A CPMF foi um grande
exemplo. Para quem tem saúde privada, o imposto é uma excrecência. Daí o
entendimento de que estaria financiando algo para os outros, pecado mortal da
contemporaneidade. Juntou-se a esse sentimento a necessidade de a burguesia
eliminar um instrumento razoavelmente eficaz de rastreamento de movimentações
financeiras “atípicas”, e o trabalho foi feito.
De
forma mais abrangente, qualquer medida que modifique as regras desse jogo é
vista como um ataque do Estado à individualidade, metamorfoseada em
individualismo. Observe o caso da regulamentação das empregadas domésticas,
cuidadoras e babás. Esse caso mostra algo latente na sociedade brasileira, que
é a anulação de qualquer medida que modifique as regras do jogo, mesmo que
sejam regras do continente que todos têm por estima como exemplo de civilidade
e até de Civilização e que as práticas a serem eliminadas remontem práticas
escravagistas.
Logicamente
que essa característica da sociedade brasileira é intensificada pelo fosso da
desigualdade social. A Professora Fúlvia Rosemberg possui uma argumentação da
qual gosto muito. Em sociedades mais igualitárias, onde a diferença entre os
mais ricos e os mais pobres é pequena, pagar uma empregada, com salário mínimo,
consiste em pobreza imediata. Se um alemão recebe 5.000 euros, mas o salário
mínimo, digamos, é de 3000 euros, sobram para ele 2.000 euros, menos do que o
empregado e o salário mínimo. Como a diferença entre os mais ricos e os mais
pobres no Brasil é imensa, isso faz com que se constituía um mercado de
prestação de serviços inúteis de trabalhadores sub-remunerados para quem possui
renda, parecido com o Brasil-Colônia, pautado na ojeriza ao trabalho manual. Como
a classe média pode pagar por uma babá, por exemplo, para cuidar de seus
filhos, ela não coloca na ordem do dia o atendimento público de escolas públicas
de educação infantil, porque a mãe trabalha normalmente e esse serviço está a contento,
ainda que não seja profissional com um professor. Isso explicaria por que as
creches somente agora estão sendo expandidas, por que não foram colocadas
ontologicamente na ordem do dia do movimento feminista brasileiro, mais
direcionado historicamente a questões sobre o corpo.
Estúpida que acha que pedir um chá à
empregada às 10h00m da noite é “direito”. Peguei a foto menos chocante, porque
a cara dela está desfigurada por botox.
Faz sentido. Se você oferece uma educação privada ao seu
filho, por que lutar por uma escola pública de qualidade (mesmo sendo um
professor de escola pública)? Se você possui um plano de saúde privado, por que
lutar por uma saúde pública de qualidade (mesmo sendo um médico ou enfermeiro
de posto público)? Pode até lutar, mas sempre será no nível da solidariedade e
do voluntarismo, o que é relevantíssimo, mas não é ontológico. Sob uma visão
mais solipsista, pagar imposto transforma-se em um entrave para o “crescimento
pessoal”, mensurado pelo aumento da capacidade de consumo, o que inclui aquilo
que seriam direitos sociais e constitucionais.
A única coisa que a classe média não conseguiu obter de
forma privada foi segurança, muito em função dos custos e do monopólio
flexibilizado do Estado, sobretudo para os milionários nos condomínios de alto
padrão, o que explica as visões mais fascistas sentidas atualmente, como o
apoio velado e explícito a grupos de extermínio e redução da maioridade penal.
Quando se analisa o caso do governo estadual paulista, isso é mais grave, pois,
além da xenofobia bandeirante já naturalizada, como o governo estadual privatizou
quase tudo (estradas e rodovias), municipalizou a educação e entregou a saúde
para Organizações Sociais (OS), não sobrou quase nada para o governador
governar de forma direta, a não ser as polícias, especialmente a militar, o que
resultou na militarização das questões sociais. Na prática, os governadores paulistas
transformaram-se em comandantes das polícias, explicando as suas aparições
quase que diárias em programas policiais.
Ação na Cracolândia.
A questão da distribuição tributária no Brasil deve ser
compreendida para além dos números. Ela deve ser entendida como a síntese das
mazelas sociais, políticas e culturais, expressão moderna de um estado perpétuo
de injustiça mesmo para uma visão estritamente republicana. Oxalá às
manifestações tenham trazido um ar diferente para todo esse jogo. Agora, é
preciso fazer com que esse ar rume para uma política tributária que promova
justiça aos injustiçados, porque são eles que sustentam o
Bolsa-Família Classe-Média e o Bolsa-Família Milionária.
L.F.S.
Tirando que você confundiu PIB com Orçamento, seu post é magnífico!
ResponderExcluirOlá Levy, concordo contigo, no segundo tópico há uma confusão entre PIB e orçamento. Valeu!
ExcluirMuito bom seu texto!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
Excluirexcelente texto!
ResponderExcluirRecomendo a leitura do texto de Pochmann publicado agora nesta semana. http://www.viomundo.com.br/denuncias/marcio-pochmann-que-o-ministerio-da-fazenda-nao-seja-apenas-o-ministerio-dos-juros.html
ResponderExcluire quem tem que ir atrás dos sonegadores não é a receita federal,ligada ao governo?
ResponderExcluirSim Silvani, mas a sonegação sempre está à frente do combate à sonegação, assim como o doping está em relação ao antidoping e o vírus em relação ao antivírus. Entretanto, essa não é a questão. A questão é a quem tem a capacidade de sonegar. O ato de sonegação é consequência da possibilidade de sonegação.
ResponderExcluirpoderias atualizar com dados atuais o gráfico 1, não de 2004?
ResponderExcluirAtualizado.
ExcluirCompreendo e concordo com muitos argumentos do texto, sobretudo o fato de que os ricos pagam poucos impostos. Mas o que me deixou pasmo é o primeiro gráfico.
ResponderExcluirEmbora seja um estudo estatístico, eu não conheço ninguém da classe média que paga apenas 30% de impostos. Vejo como ireal isso. De impostos diretos são cerca de 25%, pelo menos. Assim como a classe baixa, a classe média também consome grande parcela do salário e naturalmente paga cerca de 50% de impostos indiretos. O percentual gasto com alimentação em relação ao salário naturalmente é menor. Mas há o consumo de tecnologia, transporte, serviços, viagens, seguro, cursos e afins são muito bem tributados e consomem outra boa parcela do salário. Há uma parcela de isenção que engloba a educação e a saúde, o que é pouco para amenizar a taxação. Nem as economias escapam! Sedo ou tarde quando utilizá-las terá impostos diretos cobrados.
Em 2013 paguei entre 50% e 60% de impostos. com uma renda de 120mil ao ano. Ponto fora da curva? Tenho certeza que não sou o único.
Concordo, com um atenuante. Alguns serviços que vc colocou são inacessíveis a quem não é classe média. O fato de conseguir consumi-las o faz pertencer à classe média. Sabidamente a rede de serviços sofreu a maior alta de preços nos últimos 10 anos, o que é normal. A questão é que, mesmo assim, proporcionalmente quem é pobre paga mais imposto pelo consumo do mesmo produto. Por exemplo, pela renda que falou, deve receber algo em torno de 10 mil reais, aproximadamente. Se vc pagar uma cerveja Skol de quatro reais, mais ou menos dois reais são impostos. Isso dá 0,02% de impacto sobre o seu salário. Se um sujeito que ganha 1000 reais compra a mesma cerveja, o impacto do imposto sobre o seu salário será de 0,2%, ou seja, 10 vezes mais imposto do que você. Em termos absolutos é outra questão, pouco abordada no texto.
ExcluirSó um adendo...a maior parte do consumo nacional vem da classe média....A classe Alta é muito pequena e a baixa consome bem menos.
ResponderExcluirPor exemplo a classe alta possui carros mais caros, porém, são bem menos famílias. A classe baixa pode não possuir nenhum carro ou apenas um.
A classe média possui geralmente um carro por motorista e são muito mais famílias.
Apesar de todos serem taxados igualmente.....a classe média representa a maior arrecadação.
Outro fato importante, a classe média, para fugir do baixo nivel dos serviços públicos prestados acaba sofrendo maior impacto sobre suas rendas...pagando por educação, saúde e segurança.